Já há algumas décadas, a prática de pintura de Ricardo Homen tem assumido feições espaço-temporais que a aproxima da construção de objetos e de ambientes típica das vanguardas históricas e de suas versões locais, sobretudo do neoconcretismo brasileiro do fim dos anos 1950 e início dos anos 1960. Nesses jogos de formas, por assim dizer, opera-se um curioso conjunto de relações entre motivo e estrutura, cor e forma, que pode ser descrito suscintamente aqui como sendo da ordem da inversão, do contraste e do disparate.
A sobreposição e a justaposição de retângulos e outras formas geométricas regulares constituem as operações-chave dessas obras, gerando encontros entre planos verticais e horizontais, de variadas escalas e cores que por vezes se unificam e, mais comumente ainda, divergem. É difícil, e nessa dificuldade reside o mais saboroso engenho desses exercícios, discernir claramente o que é suporte do que é propriamente o objeto. As obras muitas vezes são muito delgadas, parecendo carecer de área; por outras vezes, evocam o quadrado como forma de repouso ou assumem espessuras exageradas. Forma e fundo encontram-se em tensa relação, já que os contornos são quase sempre irregulares, e a ideia de moldura está definitivamente superada. Por vezes, os objetos parecem estar de costas; por outras, nos convocam à visão de perfil. Por outras ainda, parecem adquirir característica quase pessoais, de tão singular o uso de formas. (Aqui deve-se evocar a intimidade de Homen com obras de sua conterrânea Lygia Clark, de quem reconhecemos a filiação à Quebra da Moldura e às Unidades Espaciais, mas também o parentesco dessas obras com o radicalismo dos Objetos ativos, de Willys de Castro.)
Ao serem montados em grupo, esses objetos potencializam seu caráter ambiental e relacional, com suas formas sugerindo outras formas nos espaços negativos da parede que as servem como sustentação. Compostas como em pautas, com alturas e intervalos, elas geram uma espécie de escrita ritmada – e não por acaso o leitor de caracteres do meu celular as identificou como letras, sugerindo que eu as copiasse. Mas elas não deixam claro se desejam ser decifradas, embora, como num alfabeto, possam ser recombinadas em exaustivas variantes de sintagmas visuais.
Nesta breve apresentação, cabe mencionar o impacto de outras atividades no universo das artes visuais sobre o trabalho de Ricardo Homen como artista. Destaca-se primeiramente seu papel como organizador de mostras de Celso Renato e Lygia Clark, a quem apresentou pioneiramente, ainda no decênio de 1990 (1). Por outro lado, Homen trabalha há décadas como exímio moldureiro. Esse ofício se revela na consciência aguçada visível na construção desses objetos, que exige cuidadosa carpintaria na construção dos volumes, que são então cobertos por tesas camadas de papel pintadas com esmero. Esses gestos são apenas parcialmente visíveis, posto que seu autor não deseja que eles ocupem excessivo protagonismo – porém revelam um desejo de se distanciar do industrialismo de grande parte da abstração hard-edge. Nas pinturas sobre papel, esse artesanato parece se pronunciar mais ainda, por meio de uma sensibilidade pictórica vernacular (Volpi vem à mente).
Ao situar-se nesta linhagem que se equilibra entre o desejo de plena comunicação das vanguardas ocidentais e a construção sensível (selvagem?) de seus reprocessamentos latino-americanos e brasileiros, o que esse conjunto de objetos traz a luz é uma reflexão fundamental: a do significado da abstração para além do cânone ocidental da arte moderna. Os procedimentos de estranhamento de que eles tão certeiramente fazem uso se tornam nossas ferramentas para dar vida novas a essas perguntas. Como ainda acreditar na possibilidade de significação dentro do vocabulário abstrato sem se limitar ao pastiche ou à mera citação? Como renovar o pacto da “natureza afetiva da forma”? Como enfrentar os impasses da comunicabilidade na era digital? Não nos enganemos: na obra recente de Ricardo Homen, somos brindados com uma experiência estética de deleite, e, ao mesmo tempo, provocados por questões que ainda nos perseguirão por muito tempo.
Serviço:
Abertura sábado, dia 26 de agosto, com brunch, entre 11-15h. Pavilhão II, Galerias 4 e 5
Em cartaz até 28 de outubro de 2023 Visitação: segunda a sexta, 9h- 18h30, sábados 9h-14h30
A entrada é gratuita, mas por agendamento prévio por telefone, email, DM no Instagram ou WhatsApp.